Fantástica Gramática Automática
Monday, August 07, 2006
  Estilo diarístico
(Dilema estival: comprar um guarda-chuva no início de Agosto. Nem sequer vou continuar. Está a chover, e então?)
Acabei de ler um livro em que o personagem principal, a determinada altura, começa a ler o seu próprio diário. No livro diz que começou a ler o diário para reflectir sobre a sua vida, para identificar os erros da sua conduta – o personagem principal é um padre. Naturalmente, não passa de um dispositivo literário para preencher o hiato temporal entre a idade adulta e a velhice do personagem. Não deixei de achar que era extremamente interessante a sugestão e decidi, na altura, pousar o livro e ler o meu diário.
Levantei-me e apanhei-o da mesa onde estava. A primeira entrada era de dezanove de Maio de dois mil e seis. A última datava de há quatro dias atrás. Comecei a ler.

A primeira vez que escrevi um diário foi no Verão da minha passagem do quinto para o sexto ano; no final do Verão. Comprei um caderno preto e comecei a contar o que se passava no meu dia a dia. Não tinha problemas se não escrevia todos os dias; isso sempre foi uma espécie de protocolo que estabeleci comigo mesmo, que não havia necessidade de escrever todos os dias, porque de certeza não haveria acontecimentos que merecessem uma reflexão diária. Mas escrevia com muita regularidade, nem que fosse nos momentos em que nada tinha para fazer. Escrevia, escrevia, escrevia.
Veio, entretanto, o secundário. Se de início as reflexões eram sobre qualquer coisa que seria importante para mim com onze anos, a partir daí, a partir dos doze, treze, catorze, a natureza daquilo que escrevia mudou radicalmente. Raparigas, namoros, um desejo de ser normal e de me sentir integrado. Bem, nada de novo para um adolescente. Uma vez escrevi que queria ser escritor. Mas nem passados seis meses achava que tudo aquilo era uma enorme barbaridade.
A última entrada que escrevi tinha quinze anos, a meio caminho dos dezasseis. Era muito simples, tinha apenas algumas linhas em que contava que tinha encontrado uma rapariga que era muito importante para mim e que ela me tinha dito algo que me tinha deixado muito feliz. Terminava da seguinte forma “amanhã continuo que hoje estou muito cansado”. E esta foi a última entrada no meu diário que acumulava cinco anos e três cadernos.
Sempre me lembro de ouvir a minha mãe dizer que se arrependia muito de ter deitado algumas cartas de amor para o lixo. Foi isso que me fez ter escrúpulos. Um dia, no meio das limpezas de Verão, foram todos parar ao lixo. E passei cinco anos sem escrever uma linha num diário.

Encontraram-me entretido com a leitura do meu diário. Estava cansado. Como é que uma pessoa muda a forma de escrever em apenas três meses? Desde dezanove de Maio até três Agosto a minha forma de escrever tinha mudado tanto. Não reflectia sobre coisas sem importância: acabava não por relatar, como um observador-participante, mas por fazer relações entre o meu passado e o meu presente e aquilo de que eu tenho medo no futuro.
Então encontraram-me entretido com a leitura do meu diário. Tinha o sobrolho franzido e estava cansado. Que estás a ler? O meu diário. Posso? Estiquei o braço e entreguei o caderno. Não, lê tu. E li.
 
Comments:
é muito interessante quando pegamos nos nossos antigos cadernos e descobrimos o que pensávamos e sentiamos então. infelizmente tb eu tive um acesso e queimei muito do que tinha escrito...ficou na minha cabeça, ou não...
 
quando tinha 10 anos resolvi escrever um diario, pelo aniversario ofereceram-me um, daqueles pindericos, cor-de-rosa, para meninas como manda a tradiçao, como se o sexo estivesse intrinsecamente ligado a uma so cor, cheio de desenhos pindericos e ate de cheiro as folhas estavam impregnadas
tambem nao escrevia nele todos os dias, escrevia quando me apetecia, e segundo muitos, ate escrevia bem "a sua menina é tao educada, olhe da um prazer ver como ela come com tanto preceito, e tem jeito para as composicoes" dizia a "ti" Eulalia, sra de um respeitoso carrapito preto
e assim o diario se transformou mais do que um diario, mas onde colocava os pensamentos mais obscuros, mais confusos, mais..... enfim, resumindo, aquilo que ia na alma de alguem que iniciava a adolescencia
a adolescencia nao foi facil, nao o é para ninguem
mas a razao pela qual a "menina" deixou de escrever permanece nesta historia
alguem violou o diario, alguem o leu, alguem vasculhou a minha alma

por isso os diarios nao se lêem, pedem-se para ler
 
aí também está a chover? :-(
 
Também eu tive um diário com cadeado (foi o primeiro de uns 4 ou cinco). Um dia, depois duma festinha de anos, soube que duas "amigas" tinham andado a tentar abri-lo com um garfo... desde aí que os meus diários deixaram de ter cadeado. Hoje em dia já não tenho um diário diário mas sim um bloquinho que anda comigo para todo o lado e que serve desde para anotar listar de compras, esboços vários e o que vai na alma.

De bom grado trocava este sol escaldante pela vossa chuva. A sério!
 
Nunca consegui fazer grandes registos... Talvez seja hipercrítica, não sei, por isso mesmo nunca julguei que o blog sobrevivesse tanto tempo. Escrevia pequenos textos, mas ficção, nada relacionado com o meu universo real.
Caro Vodka, um pouco de chuva para refrescar as ideias até não calhava mal.
 
O diário é um objecto demasiado interessante. Enquanto o objecto de pensamento, enquanto espaço para pensar, enquanto organizador de experiências. Quando me harmonizei com o meu crescimento senti necessidade de queimar os meus. Parece um paradoxo, eu sei. Mas senti que tinha apenas palavras novas e diferentes a partir dali. Queimei-os, não custou nada. Mas tive de os ler antes :)
 
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