Estilo diarístico
(Dilema estival: comprar um guarda-chuva no início de Agosto. Nem sequer vou continuar. Está a chover, e então?)
Acabei de ler um livro em que o personagem principal, a determinada altura, começa a ler o seu próprio diário. No livro diz que começou a ler o diário para reflectir sobre a sua vida, para identificar os erros da sua conduta – o personagem principal é um padre. Naturalmente, não passa de um dispositivo literário para preencher o hiato temporal entre a idade adulta e a velhice do personagem. Não deixei de achar que era extremamente interessante a sugestão e decidi, na altura, pousar o livro e ler o meu diário.
Levantei-me e apanhei-o da mesa onde estava. A primeira entrada era de dezanove de Maio de dois mil e seis. A última datava de há quatro dias atrás. Comecei a ler.
A primeira vez que escrevi um diário foi no Verão da minha passagem do quinto para o sexto ano; no final do Verão. Comprei um caderno preto e comecei a contar o que se passava no meu dia a dia. Não tinha problemas se não escrevia todos os dias; isso sempre foi uma espécie de protocolo que estabeleci comigo mesmo, que não havia necessidade de escrever todos os dias, porque de certeza não haveria acontecimentos que merecessem uma reflexão diária. Mas escrevia com muita regularidade, nem que fosse nos momentos em que nada tinha para fazer. Escrevia, escrevia, escrevia.
Veio, entretanto, o secundário. Se de início as reflexões eram sobre qualquer coisa que seria importante para mim com onze anos, a partir daí, a partir dos doze, treze, catorze, a natureza daquilo que escrevia mudou radicalmente. Raparigas, namoros, um desejo de ser normal e de me sentir integrado. Bem, nada de novo para um adolescente. Uma vez escrevi que queria ser escritor. Mas nem passados seis meses achava que tudo aquilo era uma enorme barbaridade.
A última entrada que escrevi tinha quinze anos, a meio caminho dos dezasseis. Era muito simples, tinha apenas algumas linhas em que contava que tinha encontrado uma rapariga que era muito importante para mim e que ela me tinha dito algo que me tinha deixado muito feliz. Terminava da seguinte forma “amanhã continuo que hoje estou muito cansado”. E esta foi a última entrada no meu diário que acumulava cinco anos e três cadernos.
Sempre me lembro de ouvir a minha mãe dizer que se arrependia muito de ter deitado algumas cartas de amor para o lixo. Foi isso que me fez ter escrúpulos. Um dia, no meio das limpezas de Verão, foram todos parar ao lixo. E passei cinco anos sem escrever uma linha num diário.
Encontraram-me entretido com a leitura do meu diário. Estava cansado. Como é que uma pessoa muda a forma de escrever em apenas três meses? Desde dezanove de Maio até três Agosto a minha forma de escrever tinha mudado tanto. Não reflectia sobre coisas sem importância: acabava não por relatar, como um observador-participante, mas por fazer relações entre o meu passado e o meu presente e aquilo de que eu tenho medo no futuro.
Então encontraram-me entretido com a leitura do meu diário. Tinha o sobrolho franzido e estava cansado. Que estás a ler? O meu diário. Posso? Estiquei o braço e entreguei o caderno. Não, lê tu. E li.