Com calma
Tudo começou dentro do carro a ouvir rádio. Com umas quantas palavras da locutora e uma enorme gargalhada a duas vozes. Dizia assim, “o diabo não existe, o diabo é deus com uns copos a mais – Tom Waits”. E com esta nos ficámos, atónitos. Foi ali para os lados de Olaias e Bela Vista, por baixo de um centro comercial com o Feira Nova, numas rotundas estranhas e grandes como entranhas de uma cidade impessoal. Nem vale procurar metáforas de bichos e entranhas para explicar como era o sítio onde passávamos de carro. Eram uns lugares estranhos, mais estranhos ainda que o amor.
Não sabia o que escrever e andava numa daquela compilações gigantescas de pensamentos que dão entradas enormes no blogue com parágrafos muito pequenos de uma frase só. De há uns dias para cá, andava com e sem vontade de ligar o processador de texto. Ligava o computador, ouvia música, enviava currículos, mas não escrevia. Uma ou outra linha, entradas pequenas de intertextualidades entre uma canção que eu gostava e o dia que estava. Fazia-o porque sabia que isso resultava e ainda que não fosse dos trabalhos mais felizes que tinha escrito, não ficaria mal na cadência do blogue, dada a tristezas e coisas foleiras, com muitas lágrimas por chorar. Foi assim, com deus a beber uns copos a mais, com a dor da saudade iminente a assombrar-me a trás de cada porta desta casa, que me sentei a escrever a centésima primeira entrada deste blogue. Com a tão pouco romântica música dos Yeah Yeah Yeahs. A música sempre foi muito importante, como em The English Patient.
E sentei-me a pensar que depois de cem entradas não era capaz de escrever mais. Talvez estivesse na hora de voltar a mudar de blogue, como se existisse uma barreira psicológica que se seguisse às cem entradas. Um pouco como os portugueses que não viajam porque têm a barreira psicológica de novecentos quilómetros para atravessar Espanha. Recebi mails a dizer que a minha escrita estava mais racional e menos carnal e visceral, como sempre tinha sido. Foi só um, mas foi como se tivessem sido muitos, porque há já muito que eu reconhecia isso sem o verbalizar. Acho que estava cansado de escrever com o corpo, queria escrever com objectos. Queria afastar-me de mim. Ou então estava apenas a fechar mais um ciclo criativo. Creio que os meus duram entre dois e três meses. Depois pausa. Depois mais dois e três meses. Pausa. E assim.
Li, estava a meio de escrever, I wanna be forgotten/And I don't wanna be reminded. Quis ser identificado com isto. Mas sendo o universo dos blogues um lugar de onanismo intelectual, seria falsa modéstia fazê-lo. Mais, a minha barba e desejo de ser escritor estão relacionados com uma vontade de não ser esquecido. Era uma falsa modéstia muito ingénua. “À eternidade”, e levanto o copo de vinho.