Conversas paralelas
Escrever é algo que se treina. Não se pode deixar de fazer para depois recuperarmos no mesmo ponto em que deixámos. Temos que olhar para tudo como situações passíveis de serem escritas. Não sou o primeiro a escrevê-lo e de certeza que não vou ser o último, mesmo que essa conclusão seja íntima. Regressei a Lisboa há pouco mais de vinte e quatro horas: no Martim Moniz encontrei um cheiro a relva molhada que não encontrei em mais lado nenhum; as conversas das pessoas que já consigo compreender. Quando estive em França, por muito que conseguisse compreender uma palavra ou outra, muito do que diziam era trabalho de invenção, o que tornava o mais banal passeio para comprar pão, num romancear metafísico que dificilmente conseguiria ordenar num papel ou num ecrã. Nunca tinha escrito tantos romances de duas personagens em tão poucos minutos.
Quando regressei a Portugal, conseguia perceber todas as conversas: desde a senhora que se queixava que o telemóvel estava sempre a tocar, das raparigas que tinha feito amor (?) pela primeira vez, as senhoras que comentavam que o irmão do Cristiano Ronaldo era drogado. Sinceramente não quero saber. Preferia não perceber nada do que dizem, continuar a ir onde quer que fosse e dizer “bonjour” e “merci” como hoje fiz com o condutor do autocarro. E devo ter ficado com um ar de turista tão marcado que um senhor me apontou o Museu do Azulejo, como se eu não tivesse passado por ele todos os dias durante um ano.
Era muito mais divertido inventar vidas para as pessoas do que sabê-las.
Regressado, perguntaram-me o que é que tinha feito durante um mês. Escrevi. Pensei. Há muito que não escrevia como escrevi. Disseram-me que algo parecia perdido, alguma magia. Suponho que não, porque acho que nunca a houve. Apenas fiquei mais consciente daquilo que estava a fazer. Posso ter ficado menos sensitivo naquilo que escrevo, mas cada vez mais sinto que as palavras estão no seu lugar e não são apenas palavras nem campos semânticos lineares. As interpretações que se podem fazer são para ser feitas e não são casuais, arbitrárias. Perde-se num lado ganha-se no outro. Ou isto ou aquilo. No fundo, tudo se resume às escolhas que fazemos.
Tinha, no entanto, tirado o mês para pôr as ideias no lugar mas fiz o contrário, Às vezes para se conseguir arrumar uma casa é necessário que também a consigamos desarrumar toda. Tantas vezes subi a montanha como a desci. Tantas vezes andei quilómetros numa direcção para nem sempre regressar pelo mesmo caminho. E agora? Agora não é nada. Trouxe um diário com mais páginas escritas, mais rapidez na mão e na caneta e menos nas teclas, um livro para rever, uma tese para escrever e tenho o coração mais cheio.
E agora? É gozar os vinte e quatro anos com tudo isto.