Fantástica Gramática Automática
Saturday, September 23, 2006
  Elegia ao Outono
O MOVIMENTO CHEIO,
Sento-me na varanda onde comecei a fumar às escondidas na Páscoa e mais declaradamente pouco depois disso. Sento-me numa tanque antigo virado ao contrário e pintado de amarelo pela minha irmã. É de noite que ali se está melhor, quando um vento como chamamento vem do rio. Não há silêncio, é impossível haver silêncio nesta parte da cidade. À distância, quase consigo ouvir os carros que aceleram na Ponte Vasco da Gama. Há os navios que aportam e os guindastes que os descarregam. E o comboio que passa na estação que já ninguém usa. Não pára, passa. Mas não é isto que enche a noite: é o vento, o vento enche o espaço cheio de ar.
O AUTOCARRO ARRANCA A MEIO
O motor arranca com tanta força, faz a curva em aceleração, acorda quem não está habituado. É de noite, ainda é a mesma noite e os autocarros arrancam para fazer a última viagem antes de começar a rede da madrugada. Ao mesmo tempo que o monóxido de carbono sai do escape do autocarro e levanta as folhas, o vento da segunda noite de Outono sopra e arranca das árvores as folhas que se misturam com as que se elevam.
NA PRAÇA VAZIA.
Há uma casa de banho pré-fabricada onde os condutores dos autocarros vão cagar e mijar. Há um quiosque onde uma senhora que põe laca todos os dias e que agasalha o cão quando é Inverno, vende jornais. É isso que se faz num quiosque. Vendia módulos, se os módulos não tivessem deixado de existir.
Olha com desdém para as mulheres que se sentam na esplanada e comentam qualquer coisa que lhes interessa muito e que não me interessa nada. Vidas alheias, mas nunca as suas. A não ser, talvez, as desgraças.
NO CAIXOTE DO LIXO
Em frente à mercearia, o caixote do lixo do meu prédio. Não transborda desde que o merceeiro morreu. Senti a morte do merceeiro: não porque deixei de ter fruta fresca todos os dias, mas porque gostava dele sinceramente. O Sr. Manuel. Não gostava da viúva, que voltou a abrir a mercearia, nunca mais lá fui. Dizia sempre bom dia e boa tarde e não tinha hora de fechar. Era quando o ultimo freguês se tivesse ido embora. E como qualquer bom merceeiro e merceeiro bom, oferecia pastilhas elásticas aos miúdos. Ela não.
UMA CASCA DE MELANCIA
A casca de melancia só está aqui para rimar com vazia. E já agora, acrescente-se um pouco de simbolismo, porque elogiamos o Outono e a melancia é um fruto de Verão. Restando só a casca, é porque o Verão acabou.
ATACADA PELO BICHO.
À noite, quando os carros passam espaçados nas traseiras da minha casa, as ratazanas aproveitam para atravessar a estrada. De dia não passam; não porque têm vergonha, mas porque têm medo. Ao contrário da galinha, não atravessam a estrada só para chegar ao outro lado. Atravessam porque, do outro lado – claro está –, estão tijolos empilhados que servem de porto seguro para a noite. E depois não sei para onde vão. Talvez para os barcos que estão estacionados no rio, na tentativa de chegar a algum destino exótico. Exótico, entendido à escala da ratazana.
 
Comments:
Também tu (quase) ouves a ponte? Em relação a "merceeiros bons", despertaste-me belas recordações, mas de outra cidade...
 
Já não existem módulos? E pensar que eu os coleccionei...
 
Acabo de descobrir o teu blog, e se mo permitires, vou adicioná-lo ao meu. Faço questão de passar por cá mais vezes a partir de hoje.

Gostei.

Mitzrael
 
Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]





<< Home
fgautomatica@gmail.com | 'é necessário ter o espírito aberto, mas não tão aberto que o cérebro caia'
2H 31 da Armada A Natureza do Mal A Origem das Espécies A Senhora Sócrates A Terceira Noite A Vida Breve Abrupto Albergue dos Danados Auto-Retrato Avatares de um Desejo B-Site Baghdad Burning BibliOdyssey Blogue Atlântico Borboletas na Barriga Chanatas Ciberescritas Cinco Dias CORPO VISÍVEL Corta-Fitas Da Literatura De Rerum Natura Devaneios Diário Divulgando Banda Desenhada Dualidade Ondulatória Corpuscular E Deus Criou A Mulher Estado Civil Estranho Amor French Kissin' Golpe de Estado Hipatia Ilustrações, Desenhos e Outras Coisas Insónia Irmão Lúcia Jardins de Vento JP Coutinho Kitschnet Kontratempos Maiúsculas Mas Certamente que Sim! Menina Limão Miniscente Mise en Abyme Miss Pearls O Cachimbo de Magritte O Insurgente O Mundo Perfeito O Regabofe Os Canhões de Navarone Pelas Alminhas Porosidade Etérea Portugal dos Pequeninos PostSecret Quatro Caminhos She Hangs Brightly Sorumbático Ter enos Vag s Terra de Ninguém Voz do Deserto Welcome to Elsinore Womenage a Trois
Blogtailors Cooperativa Literária Escritas Mutantes Exploding Dog Extratexto Mattias Inks Minguante mt design O Binóculo Russell's Teapot
A Causa Foi Modificada A Sexta Coluna Por Vocación Terapia Metatísica Tristes Tópicos
11/2005 - 12/2005 / 12/2005 - 01/2006 / 01/2006 - 02/2006 / 02/2006 - 03/2006 / 03/2006 - 04/2006 / 04/2006 - 05/2006 / 05/2006 - 06/2006 / 06/2006 - 07/2006 / 07/2006 - 08/2006 / 08/2006 - 09/2006 / 09/2006 - 10/2006 / 10/2006 - 11/2006 / 11/2006 - 12/2006 / 12/2006 - 01/2007 / 01/2007 - 02/2007 / 02/2007 - 03/2007 / 03/2007 - 04/2007 / 04/2007 - 05/2007 / 05/2007 - 06/2007 / 06/2007 - 07/2007 / 07/2007 - 08/2007 / 08/2007 - 09/2007 / 09/2007 - 10/2007 / 10/2007 - 11/2007 / 11/2007 - 12/2007 / 12/2007 - 01/2008 / 01/2008 - 02/2008 / 02/2008 - 03/2008 / 03/2008 - 04/2008 / 04/2008 - 05/2008 / 05/2008 - 06/2008 / 06/2008 - 07/2008 / 07/2008 - 08/2008 / 08/2008 - 09/2008 / 09/2008 - 10/2008 / 10/2008 - 11/2008 / 11/2008 - 12/2008 / 01/2009 - 02/2009 /