Fim do dia a olhar para a linha do comboio
De manhã, leio no autocarro e no metro. À tarde não. Não que não tenha forças, nem que o livro não me interesse, mas não. Observo o cheiro das pessoas. Nessas alturas as pessoas têm um cheiro cansado, um cheiro a suor subtil. Não aquele cheiro de quem fez trabalho braçal as oito horas do dia, mas de quem sua ao longo do dia e o suor seca na camisola. E voltam a suar e o suor volta a secar. As ansiedades e contingências de uma dia que podia ser diferente mas que acabou por ser assim. Não é um cheiro mau, é cheiro, é de pessoas. Há quem encoste a cabeça ao fresco do vidro e feche os olhos, há quem desaperte a gravata. Há ainda quem abra a janela e sinta o fresco da tarde a correr no corredor no autocarro entre os rostos cansados. Há quem faça o que quer que seja por um poucochinho de liberdade ao fim do dia. No meio de multidões, sozinhos com pensamentos.
Eu teço vidas para as pessoas. Em cada uma que olho, vejo tantas coisas que são mentira, tantas que são verdade, tantos jogos de conjecturas e invenções. Vejo nas mulheres cansadas que não falam nem com ninguém trocam palavra vidas duras. Vejo vidas no precipício e imagino que quase todas se tentaram suicidar. Porque não é fácil viver dentro de um bloco de betão no meio de carreiros de alcatrão. Mas mesmo que não se tenham tentado suicidar pensam na morte. Para mim, quase todas pensam na morte. Não precisam de ter ninguém que as agrida quando chegam a casa nem que se zangue nem que as odeie. Podem ter alguém que faça amor em vez de foder e com quem durmam de mão dada. É um bálsamo, mas é durante a noite, sabe a pouco julgo eu. Mas pensam na morte. É o que invento.
Quase a chegar a casa, uma visão há algo que me distrai ainda mais. Capta tudo em mim pela beleza da imagem. A imagem não é fotográfica nem fotografável. Não pode ser manipulada porque é única e genuína, acontece e há-de acontecer. É tão poderosa que acabo por sair numa paragem depois da minha casa.
Uma mulher, com três sacos do Minipreço numa mão e um só na outra, olhava de cima de uma ponte, para a linha do comboio, entre as estações de Marvila e o Poço do Bispo.