Trabalho de férias
Epístola
It’s all very well
Learning poetry by heart
But it doesn’t mean that we have to live like poets – The French
Introdução
Nos últimos três dias, que correspondem aos últimos três dias do mês e aos últimos dias em Grenoble reuni vários pensamentos que fui escrevendo. Às vezes frases, outras vezes pequenos textos e sensações. Dos vários que escrevi, tentei desenvolver, mas nenhum permitia um grande desenvolvimento. Nem eu me sentia capaz de o fazer.
A vida de qualquer pessoa divide-se entre a esfera pública e a esfera privada. Nunca tive problemas com essa divisão, até começar a escrever um blogue e um diário. Há mais lugares de escrita e nem sempre percebemos o que é que pertence a quê. Ou onde é que devia ser escrito. O que piora a situação: qualquer acto de escrita ser sempre um acto autobiográfico, porque assenta na experiência do autor.
Verdades, meias verdades, omissões e mentiras. O que escrevo de seguida está assente na minha experiência e na forma como aprendi a ver e apreender a realidade.
Parte Primeira
Se a experiência, quer seja de vida ou de outra coisa qualquer, é fundamental para a escrita (porque todo o acto de escrita é autobiográfico), porque é que eu insisto obstinadamente em não sair de casa?
Parte Segunda
Subi a montanha, escrevi quatro postais no topo e desci a montanha. Quando passei pelo correio, deixei-os endereçados a Portugal. Para quatro moradas diferentes. No dia seguinte, enviei o quinto.
Subi a montanha, sozinho. À minha volta, imensos desportistas, alpinistas, caminhantes, trepadores. Ouvia música, no meio da natureza e parava para fumar cigarros. Tossia muito, mas quando passavam pessoas ficava envergonhado e parava; não queria que me vissem o vício. Lembrei-me do Trainspotting: a determinada altura vão todos para o meio do nada, sobem uma montanha com um saco de plástico cheio de cerveja. A imagem é tão decadente quanto bela, rompe com qualquer normalidade (artisticamente falando). De certa forma eu era eles: no meio da natureza, fechava-me em mim e ouvia música, fechava-me nos meus ouvidos. Lembrei-me do filme porque entre a música e a cerveja, não distávamos muito. E apetecia-me estar embrutecido.
Tinha já andado alguns quilómetros quando me decidi a ainda subir a montanha. Estava no ponto de equilíbrio entre os quilómetros que andava e os cigarros que fumava. Anulavam-se, fiquei no zero. E parava para fumar um cigarro com o pretexto de escrever mais um postal.
Parte Terceira
Doem-me as pernas e dói-me a alma. Gosto dizer que me dói a alma porque quer dizer que não é dor, é apenas uma sensação. E não é palpável. Há já muito tempo que estou inquieto. Provavelmente desde que tive consciência de mim,
coisa estranha,
fiquei com vontade de dizer a muitas pessoas que gostava delas. De todas as pessoas a quem queria dizer que gostava delas, apenas disse a três: no entanto, acho que não compreenderam muito bem a necessidade que tive de lhes dizer isso.
Parte Quarta
It’s just a day like any other day
A beautiful day
For an accident, let’s say – Zero 7
Sempre pensei que se me quisesse suicidar resolvia tudo primeiro. Diria às pessoas de quem gosto que gostava delas e às pessoas de quem não gosto que não gostava delas. No entanto, se resolvesse todas as minhas questões já não tinha vontade de me suicidar. E lembrei-me de chamar a essa sinceridade próxima do suicídio, sinceridade pura – uma espécie de altruísmo.
Isto tudo junto do supremo acto de egoísmo.
Parte Quinta
Because I am a gentle man
Think of me as just your fan
Who remembers every dress you ever wore – The Magnetic Fields
Estou na lavandaria e tiro a roupa da máquina de lavar. No meio de camisolas grandes estão camisolas muito pequenas. E também cuecas de mulher. E um soutien. Enquanto arrumo a roupa no saco sinto-me feliz. Porque tomo conta de alguém e alguém toma conta de mim.
Conclusão
Às vezes acho que aquilo que escrevo é extremamente aborrecido e sem qualidade, especialmente quando penso que poderia escrever crónicas numa revista ou num jornal. Sinto que é como um céu cinzento num dia ventoso de Outono. Provavelmente estas dúvidas cerca da minha escrita são uma tentativa de me localizar.
Onde é que estou? Em Grenoble, a caminho de Lisboa via Paris. Onde é que estou? Em casa (You want me to come home. But I am home). Onde é que estou? No início.