Tratado de criatividade e ideias
Disseram-me, várias vezes, que não me faltavam ideias. Faltava-me método. É isso também que distingue um artista de um amador. Todas as pessoas têm ideias, piores ou melhores, mas têm ideias: literárias, musicais, imagéticas – paradas ou em movimento. A capacidade de as pôr em prática, de enveredar por um processo, com método, é algo que não está ao alcance de qualquer um. Porque dá trabalho.
Em várias discussões, sempre defendi que qualquer trabalho artístico residia mais no trabalho, no empenho – entenda-se, no processo – do que na criatividade, na inspiração. Porque a ideia a partir da qual se parte, raramente chega intacta ao final do processo. E poucos resíduos tem.
Nesta altura, após o primeiro bloco de texto, com dois parágrafos e cento e nove palavras, já percebi que esta entrada só será concretizada com muito trabalho, sem criatividade, pouco carnal e visceral, pouco de dentro e pouco da pele, para vir directamente da cabeça, do meu instrumento de racionalidade.
Escrevo furiosamente, ou faço uma lista de palavras difíceis de que gosto e tento ligá-las com linhas, como os jogos de crianças em que se tem que unir os pontos
Ou então recorro a mecanismos que sei que resultam, habitualmente intertextualidades, os meus preferidos. Mas dizem-me e escrevem-me a dizer que estou a perder a carnalidade ou a visceralidade, apesar de começar a pensar que até sem ideias consigo escrever três mil caracteres minimamente aceitáveis. Isto bem escondido e encapotado na minha muito fantasiosa consciência.
Contra tudo o que já foi escrito nesta entrada, aceito e assumo que escrevo com o corpo, que em dúvida, a melhor escrita é aquela que me sai da pele, dos sentidos, de todos. Metaforicamente, como gosto de dizer, “Não sejas tão literal.” Gosto da expressão “escrever com o corpo”, é extremamente sensorial e sensual. Isto até pode ser uma enorme contradição, eu não agir, criativamente, em conformidade com aquilo que defendo. Para não ser contradição, há um serão e uma manhã que estou sentado, a escrever sobre escrever, a meta-escrever, a esforçar-me para um dia poder dizer, sem vergonha, que sou escritor.
Nãos bolsos das minhas calças há papeis à quatro dobrados em quatro com ideias que surgem em qualquer lugar. As melhores ideias que tenho surgem sempre antes de dormir, naquela fase em que não percebemos onde estamos. As soluções para os grandes problemas no autocarro, na banheira, a conduzir à noite numa auto-estrada vazia. E encho papeis e papeis que se dobram e desdobram em post-it colados à volta do ecrã do computador.
As ideias surgem porque o nosso cérebro funciona, mesmo quando julgamos que está em descanso. Não me importo de ter ideias onde quer que seja, não interessa o lugar nem a situação. Desde que tenha um papel à quatro dobrado em quatro. Mas não confio, e por isso, contabilizado, demorai quase cinco horas a escrever esta entrada.
(Um amigo meu, uma vez, pintou um frigorífico com o corpo. Foi literal.)