Anormal
Estou a ler um romance que se passa no meu bairro. Não é bem no meu bairro, mas é tão perto que é quase como se fosse no meu bairro. Se o tivesse lido há dois anos atrás teriam sido apenas nomes a que atribuiria um qualquer lugar inventado em Lisboa: ou mais para Belém ou para Sacavém. Mas não, acabei na charneira desse bairro. Conheço as gaivotas e vi o enterro do homem dos dedos amarelos que o ácido corroeu. Isto porque estou a gostar de ver o meu bairro – que agora é meu porque também dele faço parte e dele me apropriei – escrito por um autor que não foi Nobel por uma unha. Pior, uma unha roída.
O bairro é entre Belém e Sacavém, mais para um lado do que para outro: sempre gostei mais de coisas tendenciosas do que equilibradas, são mais humanas. Desde que sejam tendenciosas a meu favor (esta roubei ao Bill Waterson).
Deste autor que estou a ler, muito se escreve e ainda há muito ou pouco tempo ele disse qualquer coisa como, “estou a deixar trabalho para os críticos durante quinhentos anos”
(paráfrase).
(E os críticos são os das universidades, não os das revistas ou Jornal de Letras. São os que definem o cânone, o sistema central do Even-Zohar.)
Mais que se escreve e diz é que ele é louco, o António. Eu gosto dele e reconheço que é uma pessoa perturbada, louca anormal.
(Já me disseram que escrevo como ele, mas julgo que sou tão merecedor desse elogio quanto a Margarida Rebelo Pinto é da sua própria comparação com Eça de Queirós. Não que eu seja como ela: antes parar de escrever a ser como ela.)
Portanto, o António é anormal. Anormal entendido como uma pessoa que não é normal. O conceito de normalidade é demasiado uniformizador, desde a adolescência até aos estudos universitários; mas como podemos considerar uma pessoa normal? Dotada de uma especificidade muito própria, de uma subjectividade, é impossível que haja alguém igual a alguém. Apenas alguém igual a ninguém. Há elementos de união, elementos de identificação comum, raças, credos, sexos, cidades, países. Todos aqueles elementos que os críticos agora estudam
(os das universidades e não dos jornais).
Identificamo-nos com pessoas, tentamos ser iguais, normais normalizados. Mas não somos. Carregamos em nós uma poderosa individualidade que nos distancia e nos aproxima dos outros consoante as situações.
Diálogo
PÓS-COLONIALISMO: E quem são os outros?
EU: Considerando o sujeito, todos aqueles que o não são. Ou seja, o resto do mundo é os outros para um sujeito. Mais, somos todos anormais, disfuncionais e cerebrais: com alguns acéfalos à mistura.