Hora Crepuscular
É sempre naquele momento do dia. Mas o dia pode ser dividido em infinitos momentos, da mesma forma que uma circunferência contém infinitos pontos. Porque a duração do dia pode ser dividida em todas as fracções que pretendermos e mesmo assim haver mais para dividir. Pode ser aquilo que nós quisermos. Desde que o queiramos.
O casal, à distância de alguns centímetros, toca-se apenas com a língua e as mãos dele nas mamas dela e as mãos dela na pila dele.
Dois miúdos, com camisolas de tamanho bem maior que o corpo magro arriscam uma amputação na porta do autocarro.
A mãe que carrega o filho deficiente e se zanga com os filhos das outras que arriscam as mãos na porta do autocarro.
Velhas queixam-se da vida e velhos cheiram a mijo.
Entre os solavancos a vida vai avançando e é um mistério. O autocarro também avança e está já escuro porque há a sombra que os prédios fazem. Numa ponte por cima de um viaduto com as bermas cheias de lixo, entre dois prédios de tantos andares o sol poente amarelo entra pelas janelas grandes do autocarro.
Nesse momento, nesse instante que durará apenas alguns segundos, que será uma longa divisão do dia, todas as pessoas são bonitas. Ficam em tons de ocre e amarelo, ficam bonitas. As pessoas em silêncio, com o ronco do motor e a borracha no alcatrão.
Volta a sombra dos prédios e o barulho das pessoas.