O reflexo da morte
Hoje sou muitas pessoas e não tenho idade
(talvez a ingenuidade dos cinco anos
e a perversão de um velho perro.
Hoje não sei quem sou e desdobro-me em tantas pessoas que não caibo em mim hoje.)
Hoje é um espelho,
(…) espelho, superfície duas vezes enganadora porque reproduz um espaço profundo e o nega mostrando-o como mera projecção, onde verdadeiramente nada acontece, só o fantasma exterior e mudo das pessoas e das coisas, árvore que para o lago se inclina, rosto que nele se procura, sem que as imagens de árvore e rosto o perturbem, o alterem, lhe toquem sequer.
Hoje é um espelho.
Hoje é também um cigarro fumado
entre escarros e palavrões
na paragem do autocarro à espera do autocarro e na varanda inundada com o pijama molhado
(as luzes da ponte e o convento do Beato).
Nunca fui a um funeral Os corpos metidos na terra É um desejo brutal Calar a velha que berra. Hoje também me lembrei disto. Já acompanhei corpos e fui a velórios, mas não a funerais. E mãe dele que se enfrascou de barbitúricos e cerveja e o pai dela que se enfiou num sobreiro,
(E quantos tantos terei eu que enterrar?)
Lembro-me dos ciganos a chorar. É sempre uma imagem brutal
“(Calem-se que ainda vos ouço a chorar em punjabi e magiar!)”
assim como as crianças que forçam o choro para chamar a atenção sobre si. Choravam na morgue do hospital quando um morria. E depois não sei onde o enterravam, mas as vozes ficavam muito tempo a escorrer pelos ouvidos com a liquefacção lacrimejante forçada.
Não se chora em magiar. Suporta-se: há uma aura trágica, de heróis que os envolve. Ficam inertes e passivos e não choram
(eu podia ser magiar porque não sei chorar)
como eu, que quando chorei pela primeira vez numa porrada de anos
– e para voltar a chorar foi preciso levar uma carga de porrada –
(e ninguém me pousou mão em cima)
fui-me ver ao espelho para saber se estava a chorar bem. Cubro-me de ridículo e mais que um herói trágico
Heleno helénico irmão de Cassandra
era um personagem medíocre e simplório armado ao pingarelho e a defender que os homens choram mas sem conseguir verter um pingo de vergonha. E acabei a correr do quarto para a casa de banho grande, onde está o espelho onde costumo rapar a cara.