Fantástica Gramática Automática
Saturday, December 23, 2006
  História de natal de Miguel F Ceia
Nunca pensei em escrever um conto. Isto não é apenas mais uma introdução pirosa que fica bem e dá um sentido de honestidade ao texto
(como a quadra obriga)
e como não sei quantas pessoas o vão ler faço mesmo uma introdução pirosa que é esta. Não é um conto é uma história e assim não tenho que fazer finais felizes
(que não
gosto)
nem inventar que as pessoas são boas e que merece a pena acreditar nelas
(não, não merece
na humanidade em geral não naquele pequeno conjunto de pessoas que conhecemos e de quem gostamos e digo assim porque
- Odeio o verbo amar em todas as suas conjugações e a última vez que escrevi isto a minha irmã escreveu-me um poema com essa merda de conjugação
mas adoro
- Seria bom dizer amo?
o substantivo amor.)
Mas é natal e comprei um livro que traz escrita uma história que uma vez vi num filme com argumento do Paul Auster, Smoke. Tem uma banda sonora genial mas como quero escrever uma história de natal
(tanta rima tanta palavra tanto barulho)
isso não interessa muito. A história é uma narrativa dentro da narrativa e chama-se A História de Natal do Auggie Wren. É um livro bonito com ilustrações bonitas e na livraria que comprei está catalogado como livro para crianças
(com palavras como
catano
piadético
merdosos)
Eu quis fazer o mesmo com uma história minha contada por mim. É A História de natal de Miguel F Ceia e aqui acaba a introdução merdosa
(também posso dizer estes palavrões na minha história de natal porque fui eu quem definiu as regras da escrita desta história de natal.)
Já o conto
(- História
- Isso)
tinha começado há uns dias quando tive que fazer uma viagem de carro
(porque a história que conto estende-se por um período de dois ou três dias
nem eu próprio defini
uma espécie de espaço temporal que a minha memória selectiva definiu e que eu vou respeitar sem pensar muito nas justificações tenho que apresentar. Mas vendo que não é académico não tenho que justificar nada, tem apenas que ser verosímil. E como é baseado na minha realidade há-de ser verosímil
pelo menos para mim)
e já viajava há uma hora e picos e aproximava-me de Lisboa e por ter dormido pouco os olhos estavam meio fechados. Mais ainda porque o sol tinha-me batido de lado a viagem inteira. Já me aproximava mesmo de Lisboa
(e estava tão próximo que tinha até passado Aveiras)
e ao lado da auto-estrada estava uma mulher a passear
(subia e descia aqueles montes de terra que há depois das bermas onde não há caminhos e são apenas montes de terra porque não souberam o que fazer a tanta terra
acho eu)
. Saltava à vista porque tinha uma camisola cor-de-rosa e umas calças verdes. Não lhe vi o rosto mas imagino que fosse triste
(só podia ser triste)
porque ninguém passeia junto à auto-estrada para ver os carros passar. Aproximava-se de uma ponte e depois de ter passado por baixo desta continuei a pensar nela
(na ponte
e na mulher)
porque achei que a mulher se ia deixar cair. Não se atirava: dobrava-se pela cintura no corrimão de ferro pintado de verde e caía para que um carro a esmagasse com a roda. Pensava no suicídio, Não, Então porque caiu, Porque na altura ocorreu-lhe que era o melhor que tinha a fazer
(mas não sei se cai se se atira ou se se deixa cair e dobrar e cair na estrada para ser esmagada pela roda de um camião, mas continuei na auto-estrada e à velocidade que o carro me permitia e deixei de a ver mas continuei a pensar nela. Mas acho que não vai morrer, as pessoas têm direito à tristeza e estar triste não é sinónimo de proximidade do suicídio. Foi para casa e era feliz e estava a aproveitar o sol
- Tanto sol naquela manhã
- Tanta luminosidade naquela manhã
- Tanta seratonina naquela manhã
digo eu na minha voz de narrador que sabe tudo e interrompe a escrita para voltar a colocar os óculos no alto do nariz.)
Dois dias antes estava em Lisboa a passar no Martim Moniz
(já nem me lembro o que lá estava a fazer
compras provavelmente
e se calhar não estava lá e imaginei que estava lá para ter um local para a minha história e para estar em Lisboa porque era em Lisboa que eu quero que isto tenha lugar e agora me lembro que aconteceu mesmo)
por causa de um jantar com uns amigos. Íamos os dois
(ela e eu.)
Há dias que ela me notava o silêncio
- Andas tão calado
- Não
- Tão calado porquê?
- Não
(E porque não e eu não calado porque não me apetecia falar e talvez um pouco mais calado que a verborreia habitual e ecolálica em que vomito palavras umas atrás das outras na esperança que façam algum sentido quando chegarem ao seu final
encontrava-me nesse estado limiar em que decidimos a nossa vida e tudo ganha uma dimensão tão confusa e profunda que apenas no silêncio e nos nossos pensamentos encontramos um porto-abrigo porto-sossego porto-salvo-seguro)
- Mas...
- Tão calado
(e nem me deixavas explicar e voltei a distrair-me em frente ao centro comercial do Martim Moniz
o da encosta do castelo
quando um homem te pediu dinheiro e saltaste para trás
não para trás de mim)
- Já nem me lembrava do que era Portugal
- Ele falava ao telemóvel com um isqueiro
- O quê
(não te conseguia explicar a miséria daquele trapo humano
e umas vezes tão à-frente e outras tão a-trás de todas as pessoas)
- Não foi nada.
Ainda olhei duas ou três vezes para trás para ter a certeza que não nos seguia que não nos queria mal e nós já estávamos atrasados e há muitos dias que sentia que não estava muito bem
(não estou bem
- Andas tão calado
- Não
- Tão calado porquê?
- Não)
até estava bem, estava era mais calado que o habitual o que para as outras pessoas é sinónimo de que algo se passa, que não estou bem
(- Não estás bem
- Estou feliz
- Não estás bem
- Não tenho que falar
- Não estás bem
- Vou para Londres.)
Por volta desses momentos e já o homem que falava ao telemóvel com o isqueiro e que pedia dinheiro às pessoas que passavam já tinha desaparecido da tua mente e eu sabia que não me ia esquecer porque nunca te escondes atrás de mim
(nem dessa vez o fizeste
não tinhas medo, estavas assustada
- Foi o salto que ele deu)
e porque achei que era uma imagem bonita do género humano
(não homem
não mulher
o género humano assexuado e com uma consciência)
e daquilo que eu já preparava nos confins de mim, da história de natal que acabaria por escrever em três dias separados a uma velocidade que raramente é própria dos meus dedos
(mais ainda estando frio e eu quase os não sinto.)
Já me tinhas dado a mão ou o braço
(não me lembro)
e nesse momento nesse gesto
(não me apeteceu voltar a falar
ou pelo menos falar por falar)
senti que um qualquer calor me invadia. E mais que um milagre imbecil de natal como nos querem fazer crer a torto e a direito senti-me bem aqui
- Há muito que não te via sorrir
- …
(Naquele momento o casal que se batia dentro de uma carrinha
com uma criança entre eles
podia estar a sangrar e pessoas saudáveis podiam continuar a fingir doença para poder pedir dinheiro e as televisões podiam continuar a patrocinar as maiores árvores decoradas do mundo
- Há uma em Nova Iorque
- E em Tóquio e Pequim
que isso não interessa. São milagres?
- É o trabalho do Thomas Edison e muitas toneladas de ferro armado.)
mas foi naquele sorriso
(que era meu por tua causa
pelo braço
ou mão que me deste)
que não quis saber, que me muni de egoísmo e te quis só minha.
Naturalmente mais coisas se passaram nestes dois ou três dias mas essas coisas não interessam porque o sorriso estava esboçado e o conto
(é uma história, não é um conto e é de natal pela época em que foi escrita porque no resto do ano as pessoas continuam a passear junto às auto-estradas a falar ao telemóvel com isqueiros a agredirem-se e a fingir doença e pedir na rua e a árvore é para dar verosimilhança à época)
termina aqui.


Lisboa, 23 de Dezembro de 2006
 
Comments:
A tua escrita é m á g i c a (uma confissão em jeito de «silêncio». Talvez por isso nunca tenha confessado (comentado). Sabe bem abrigar-me, discretamente, nessa procissão de senti(dos), de me infiltrar e de me aninhar na liquidez e espontaneidade das tuas palavras, olhares, aromas, ponto cruz pelo universo dos sentidos...
 
a verdade é essa que a isa referiu: tu escreves mesmo bem. parabéns.
 
gostei, n sei pq a historia lembra-me a aspirina ;)
 
Só posso agradecer...

Estás a chegar ao ponto de seres "incomentado", se é que me entendes...
 
faca o favor de escrver um livro
 
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