Quem por nós chorou
Foi a vizinha do terceiro direito
(porque nós morávamos no terceiro esquerdo e estávamos a mudar de casa e eu já não sabia onde estava a minha vida
caixotes
caixas
dossiers
malas
embrulhos não presentes)
que nos perguntou se íamos embora. Não gosto de conversas de vizinhas, querem saber sempre mais, demais
(mais, sempre pensei que não seríamos bem-vindos no prédio porque chegávamos tarde e ouvíamos música durante a noite toda
ainda que fosse muito baixinho),
- Vão sair
- Sim
(porquê?)
- Ah e não vai ficar mais ninguém?
- Não
(já deves estar toda feliz, vamo-nos embora, acaba o barulho à noites, as saídas para o aeroporto às quatro da manhã, as chegadas do Bairro Alto a horas que nem sei nem eles também)
- Está bem, não leve a mal por perguntar
- Sim, sim, boa tarde
(abre a porta do elevador, caixotes
caixas
dossiers
malas
embrulhos não presentes tudo lá para dentro e desce até ao piso térreo, dentro do carro, um suspiro pai e vamos para a casa nova e já nem sequer se fala nem pensa mais na conversa do segundo direito, que mania esta de se meter na vida dos outros.)
E na entrada do prédio novo a porteira
(cão, cadela rafeira)
cheirava aquilo que tinha trazido
(caixotes
caixas
dossiers
malas
embrulhos não presentes)
e a conversa repetia-se. E depois a vizinha do primeiro frente que agora estou no primeiro esquerdo. Era e fez-se depois de noite e estávamos cansados a jantar e o vinho pingou para a camisola e goela abaixo os músculos já doíam e a meio da noite acordei com cãibras.
A Maria contou-me,
Estávamos a carregar o meu armário e a vizinha assoma-se à porta e pergunta se vamos embora
(- Que chata)
não me interrompas e desata a chorar porque é viúva e tem medo de ficar sozinha e ouvir-nos entrar, mesmo às tantas e quantas horas da manhã era uma companhia. Chorou e eu tive tanta pena dela, porque mesmo sem nos conhecermos éramos uma companhia, alguém cuja vida sentido fazia para a dela.
Disseram-me uma vez que cada decisão na nossa vida influencia, pelo menos, a vida de mais quinze pessoas. Influenciámos apenas a de uma. Talvez haja quem mais influência tenha sobre os outros do que eu, nós. Mas fiquei com pena de não ter memorizado o rosto, o semblante, porque quando quis desabafar comigo e carregava para o elevador todas aquelas coisas que empacotavam a minha vida, era apenas um retalho físico, na altura
(sem desculpa sequer.)