Carta inter-artes com cólicas de tradução
Apesar de tudo, apesar de tudo… mas apesar de tudo. Em, apesar de tudo é um círculo, uma pescada de rabo na boca
(sardinha, carapau com arroz de tomate)
que acaba por levar a lado nenhum. Estou cansado agora, duas semanas são o suficiente, mas estou cansado agora, por um triz perdia a dignidade e essas coisas todas. Ufa, foi mesmo por um triz.
Pai e Mãe:
Está tudo bem, tudo bem, sim, não se preocupem. Já tenho trabalho e todos os dias vou de bicicleta, uma velha comprada no mercado. Até consigo, vejam lá, pôr a corrente quando salta. Uso um colete fluorescente quando está lusco-fusco. Comecei a arrumar os livros, já não quero saber do saber, arrumo-os debaixo de cama e não penso neles nem os leio. Não os vou ler nem depois voltar a ler. Adeus, o vosso filho.
Já não me consigo concentrar, a não ser
(talvez)
na assepsia branca do tecto
(amarela por causa dos candeeiros)
e a mesma cor branca de ordena a desordem em mim, que sai dos meus dedos, das mãos para cima e dos pés raízes para baixo, para a cava, onde andam ratos
(que roeram a minha camisola cinzenta em que a minha outra mãe vai coser elipses de camurça castanha)
Pai e Mãe:
Continua tudo bem. Tenho ido a umas festas com uns amigos. Eles preocupam-se também e fazem para eu não estar sozinho. Levam-me de volta. Vocês sabem, sempre me perdi com muita facilidade. Em todo o lado, até dentro de mim. Adeus, o vosso filho.
O mesmo branco asséptico do tecto vai ao chão, às paredes. Tudo branco, monocromático. Tanta ausência e silêncio perto de mim. Tantos, que me absorvem no seu ruído.
O mesmo branco asséptico do tecto transborda para a casa, o branco da minha vida por viver e tanto para escrever. Tanta ausência e silêncio perto de mim. Tantos, que me absorvem no seu ruído.
Sentei-me num parque, ao sol. Tentei lembrar-me de uma cosia que tinha a certeza que tinha acontecido, mas esta fugia e quando mais me lembrava mais longe estava. Não, acabei com as mãos vazias e o casaco preto
(o novo)
húmido e com pedaços de relva. Regressei para casa de metro porque estava frio e sabia-me bem o calor da electricidade dos carris. Queria viver num sítio alto onde me pudesse sentar à janela a fumar e a ouvir a conversa das pessoas, os passos na rua
(os saltos, os ténis, as passadas longas curtas, as saias travadas)
há tanta vida fora de mim, há tanta vida dentro de mim. Quero vivê-la!
Agora.
E círculo,
Apesar de tudo, apesar de tudo… mas apesar de tudo. Em, apesar de tudo é um círculo, uma pescada de rabo na boca
(sardinha, carapau com arroz de tomate)
que acaba por levar a lado nenhum.