Anúncio de um banco
Aqui podia ser feliz. Até podia ser feliz em qualquer lugar
(até na cantina onde almoço, onde bebo chá e como bolachas de chocoloate ao lanche, onde leio Platão e já li outras coisas numa língua incompreensível para quem quer que não seja português
ou talvez seja compreensível pela capa dura e o ar sério
e azulado e cinzento, turquesa escuro
da capa)
. estava sentado na cantina com os pés em cima do sofá, com as calças pretas ficar cinzentas do uso, os sapatos que cheiram mal quando não têm pés lá dentro. Rabiscava palavras chave
(determinação
relação)
do livro quatro sobre um prato de cenoura e alface e um tupperware de massa-sem-fim e truta fumada e um pouco de maionese. Escrevia notas sobre educação e pouco sobre a minha tese num bloco de notas que trouxe da biblioteca
(as folhas caem, e isso é uma imagem poética tão gasta quanto os poetas que a utilizaram para simbolizar a morte
a mudança de fase
estação. Mas são tão bonitas as folhas brancas cheias de azul e preto
a minha letra está a mudar
espalhadas no chão alcatifado. Sempre gostei mais de alcatifas, não fazem barulho e os pés tornam-se mais leves
a minha avó tinha um corredor de dez metros todo alcatifado. É mais acolhedor, dá vontade de tirar os sapatos.
O burburinho das pessoas servia de plataforma à música, como se inverteram os papéis. As pessoas o pano de fundo e a paixão segundo São Mateus a degladiar-se com a República.)
Aqui podia ser feliz. Mas porquê? Porque não em Lisboa, Bremen, Berlim? Porque a transitoriedade está em relação com o tempo que lá passamos. Aqui podia ser feliz, como em Lisboa, Bremen, Berlim, Auckland
(kiwi!)
, medimos a felicidade em relação com aquilo que já fomos e somos porque
(à partida)
devemos estar melhor daquilo que já estivemos. Ou somos mais infelizes em relação com a felicidade que já sentimos. Acho que aqui não podia ser feliz. Porque aqui sou feliz. A conjugação do verbo é que está mal
(não, o verbo está mesmo a mais)
.