Olhos pretos
A primeira foi quando comecei a ver um lençol cor-de-rosa-tingido que está em cima da porta da dispensa da cozinha, debaixo das escadas onde guardamos os sacos e as malas de viagem e as vassouras e o esfregão e o balde às vezes e o ferro de engomar que só a inglesa usa a caminhar na minha direcção pensei que algo podia não estar bem
(ainda era madrugada e os pássaros começavam a cantar
mas os pássaros não cantam às quatro e meia da manhã a não ser que às quatro e meia da manhã já o dia tenha nascido. Os dias nascem tão cedo e morrem tão tarde estes dias. Os pássaros cantavam nas casas nos prédios na habitação social na universidade que fechou a não ser a ala
norte oeste sul este
que serve de liceu. Os pássaros cantavam sobre estes lugares e todos os outros que não sei e o lençol cor-de-rosa-tingido não se mexeu nem a porta da dispensa onde guardamos coisas
pedaços
migalhas que os ratos vão comer. Os olhos estavam tão lentos que o imóvel se mexeu com as pálpebras.
A segunda foi a figueira no quintal que nasce no chão de cimento
(o chão não é de cimento
é terra debaixo, areia e pedras e depois fogo
mas com o passar dos anos deve ter sido muitas coisas que agora são cimento.E a figueira cheia de mosquitos a crescer com o sol de Primavera, a a sombrar as luzes laranja da rua no quarto à noite porque não há persianas
estores)
e que aparece na janelas do meu quarto e na porta da cozinha com postigo. Mexeu-se uma mão na rua, que agarra as grades da janela
(como o rato que andava no museu que afinal era um dos pés da japonesa que estava a ver os arquivos na máquina dos microfilmes a abanar)
. Tentei de ficar tentado a ir ver o que era. Mas necessitava de deixar cair a cinza do sexto cigarro no cinzeiro e quando tudo pesa, as acções são longas e alongadas e pouco meticulosas
tropeções
pontapés nas cómodas
cabeçadas nos armários.
E quando deixei cair a cinza do sexto cigarro esqueci-me que tinha visto uma mão na rua, que tinha visto a figueira nascida cimento. Não interessava que me tivesse esquecido
(sabia já que era eu outra vez que estava na rua com a figueira, que era eu quem a tinha feito mexer)
.