Remediação da “Imortalidade da Alma”
Há já uns dias que é Verão.
Tudo começou no dia em que o Verão começou, mesmo sem haver dança de bruxas no solstício, nem uma fogueira enorme no meio do parque de Richmond, com os veados a ruminar pensamentos sobre as pessoas que dançavam
(mas como não houve fogueira nem bruxas, apenas o solstício
e os veados não ruminaram pensamentos nenhuns)
. Mas foi no início de do Verão
(havia apenas algumas horas desde o seu início)
que fui ver o extracto a conta bancária. Ficou a brilhar no ecrã do ATM enquanto eu pensava naquilo
(uma fila atrás de mim o olhar curioso por cima do meu ombro, o cartão retirado à pressa e o regresso a casa no quatrocentos e cinquenta e dois em silêncio)
. Nessa noite dormi. Dormi como em qualquer outra noite; mas como em qualquer outra noite pensava no dia antes de adormecer. Lembrei-me do Livro X d’A República, da imortalidade da alma. Da minha.
Eu escolhi a vida que tenho. Sempre gostei das vidas trágicas dos poetas e dos pintores em sótãos sórdidos, gosto do passar das dificuldades para a eventualidade da glória suprema
(tal ambição levou Ovídio ao exílio e outros quantos tantos à desgraça)
. Na minha vida anterior devo ter sido um romântico. E isso ainda tem consequências bastante visíveis. Especialmente na tragicidade que confiro à minha vida e àquilo que escrevo. Depois de ter sido romântico, morri
(andei no prado oito dias e oito dias só, mas não sei a quantos dias, meses, anos, décadas isso corresponde na vida terrena, porque na vida cósmica oito dias são oito dias. Depois fomo-nos embora do prado e escolhemos
a alma
os corpos em que a nossa vida iria encarnar. Vi muitas almas e não conhecia nenhuma, mas havia muitas que ansiavam por uma vida mais agitada, outras por uma vida mais calma e outras que ansiavam por ausência de vida
uma morte branca precoce de bebé
. Escolhi a vida que tenho. E foi isso. A minha alma sabe o que me espera, mas eu não, porque neste momento sou um ser simbiótico entre alma e carne.)
Voltei a lembrar-me do extracto bancário. Sei que tem que ser assim, carregar móveis, estragar as costas
(como a Frida Kahlo mas sem o acidente)
a carregar móveis e quadros e garrafas de vinho e conteúdos de vidas. Tem que ser duro e difícil, tem que ser arrancado com fórceps e até pode sair deformado. Mas há-de sair. E nessa altura a vida que a minha alma escolheu dentro deste corpo será cumprida.
(No entanto, às vezes tenho contade de acelerar o regresso ao prado. É tão bom, dormir o relento, tempo ameno e nu.)