Fantástica Gramática Automática
Friday, July 20, 2007
  Os olhos dos outros
Nunca gostei de ser reconhecido, tudo para ser visível. Saí da terra para ir para uma maior onde o maior prazer era ouvir o bom dia do merceeiro
(que um dia morreu de ataque cardíaco deixando a merceeira que era detestável a tomar conta da mercearia
e no dia em que a mercearia não abriu nós quisemos que tivesse sido ela, é feio, mas ele era mesmo simpático e um dia ofereceu-me uma sombrinha da Regina apesar de já ter vinte e três anos
mas não interessa porque sempre gostei das sombrinhas da Regina)
, nem que fosse às quatro da manhã quando estava do táxi
(na terra eram carros de praça)
para ir para o aeroporto. Nesse dia foi um pêro para aconchegar o estômago.
Mas ainda na terra, queixava-me de como as pessoas sabiam a nossa vida, de como éramos tão visíveis. E aquilo que eu mais queria ser era anónimo
(e o paradoxo residia nas formas que eu encontrava em, querendo ser absolutamente invisível, me tornava cada vez óbvio)
. Nunca fui. Porque quanto mais mudava, de roupa, de cabelo, de futuro, de vida, mais notado me tornava
(porque fazia por isso
à escala de um universo minúsculo, de não mais de quinze pessoas, aquelas cujas nossas decisões influenciam.)
E depois da casa dos meus pais, dos anos da universidade e do merceeiro que morreu, acabei como bibliotecário. De um dia para o outro
(livros que arte, cotas de acordo com a DDC e muito pouco sobre literatura
uma poética de vez em quando, mas nunca vi o Platão)
, sem menos esperar a russa simpática abeira-se das nossas secretárias e diz,
- Eu bem me parecia que eras tu a subir a rua passo rápido e pensei, aquele é mesmo parecido com o Miguel mas esta cidade é tão grande que não pode ser ele mas decorei a cor das calças para depois vir confirmar porque também trazias os óculos escuros e afinal eras tu foi bom ver alguém conhecido.
(e justamente na altura em que mais me custava ser anónimo fui reconhecido, por umas calças cinzentas e uns óculos de cinco libras. E soube-me bem, mais do que quando usava calças vermelhas verdes e amarelas.)
 
Comments:
julgo que há certos tipos de reconhecimento que podem tocar a todos: os mais subterrâneos, não propriamente ou deliberadamente ocultos, mas menos visíveis. quando se dá um processo de reconhecimento por sintonia ou por um outro fenómeno interaccional que leva a uma captação, mesmo que haja algum desconforto de exposição, há qualquer lado de muito especial que agrada, mesmo aos menos agradados com o reconhecimento genérico.
 
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