Debaixo das escadas
Uma vez há uns anos atrás perguntei-me de onde vinha a religião. E a religião, só pode vir mesmo de um sítio
(de dentro de nós)
. Uma vez há uns meses atrás perguntei-me o que é que queriam dizer os gestos. Os gestos são uma extensão das nossas verbalizações
(ou ao contrário, são a origem das nossas verbalizações, mas que existem com as verbalizações e são igualmente importantes
tanto quanto que quando me vendam os olhos eu não consigo ouvir
nem ver)
. Uma vez há uns dias atrás estava a apanhar o avião. Sentámo-nos lado a lado e
(“Que bom, que bom, vou regressar ao meu país” “Ai que saudades, que bom, que bom”)
ao nosso lado um cachopo de nove
(chamava-se Martim)
dez onze doze anos com muita vontade de meter conversa com os da frente
(“Álvaro, Álvaro” “Que é que queres” “Olha aqueles aviões” “Ai o caralho tu e a merda dos teus aviões”)
e como não o queriam, conversava com os do lado. Às vezes penso como as crianças são cruéis umas com as outras. E estares sentado perto de estranhos impele-te a cresceres e meteres conversa sobre aquilo que têm em comum.
Olhas para mim, avalias-me. Quem é que sou eu
(quem é que és tu?)
? Lês? Eu tenho um livro. Ouves música? Eu tenho um iPod. Quem és tu? E quando te perguntavas isso e eu nos escrevo não sei que responder, porque para isso tenho que saber quem sou eu. E talvez mais do que as minhas características físicas e emocionais eu seja aquilo que significo para as pessoas, num momento no tempo e ao longo do tempo e depois desapareço. Para ti signifiquei duas horas e meia e pronto.
Quando virámos na pista parámos e arrancámos o Martim benzeu-se agarrando a cruz que tinha ao pescoço
(Sou eu agora quem olha para ti, Martim, que fazes sabes o que fazes. Persignas-te. E estás protegido. Eu morro e tu não.)
Uma vez há uns meses atrás perguntei-me o que é que queriam dizer os gestos. Os gestos são uma extensão das nossas verbalizações
(ou ao contrário, são a origem das nossas verbalizações, mas que existem com as verbalizações e são igualmente importantes
tanto quanto que quando me vendam os olhos eu não consigo ouvir
nem ver)
. Mas o gesto era de protecção, mais do que um chamamento a uma divindade abstracta. Como não passamos debaixo de escadas.