Os livros e a literatura
Quando comecei a vender livros acreditava que conseguia vender literatura em vez de vender só livros. Recomendava livros que as pessoas depois me vinham dizer que eram chatos, que não tinham pontuação e que não se percebia nada
(bom bom é ler aqueles que sofrem muito para ficar juntos aqueles que fazem limpezas espirituais aqueles que têm palavras como paixão amor inesquecível bosque céu sol recordar impossível verão primavera retrato memória em capas com pores do sol pégadas na neve e mulheres a fingir que são virgens e a fazerem-se de púdicas a beijar homens sem pelos no peito)
.
Nunca me tinham chamado intelectual a título de insulto
(que faz todo sentido em juntar-se a mais uns quantos defeitos como arrogante pretensioso e convencido)
. Sempre que me chamavam eu até considerava isso bom porque queria dizer que eu era inteligente e sabia coisas. É verdade, sei coisas, aquelas a que podemos chamar conhecimento inútil #n. Mas apesar de tudo, até conseguia vender os livros que me davam para vender
(livros que eu desprezava e que outros compravam como literatura)
. Só por estar impresso, páginas arrumadas e marcadas num livro, coerentes e ligadas por cola, nisso não faz com que esse objecto seja literatura. Só quando comecei a distanciar os conceitos é que compreendi que a diferença entre vender um livro do José Saramago e outro da Nora Roberts era como vender, num supermercado arroz para risotto ou trinca de arroz
(interessa vender o produto e não a sua qualidade)
, respectivamente. Quando comecei a ver os livros como um produto e às vezes como veículo da literatura, tudo se tornou mais fácil.