O engano imagético-cinético
Quando era mais novo, as minhas irmãs e eu, sentados em frente à televisão brigávamos por quem queríamos ser
(o mais forte o mais engraçado o mais bonito a loira a morena a que dá o beijo a bad girl gone good valia de tudo)
, personagens de séries filmes e mesmos desenhos animados. Se por caso coincidiam desatávamos à biqueirada. Escolher personagens era muitas vezes ser aquilo que não éramos na vida realidades
(os rapazes tornavam-se raparigas as raparigas rapazes éramos corajosos viajávamos tínhamos namorados e namoradas já podíamos conduzir)
e a escolha seguia critérios muito próprios e pessoais. O simples facto dessa escolha abria-nos universos e cenários que de outro modo não teríamos acesso.
Não me lembro de ter deixado de fazer isso, não houve um ponto de ruptura. Depois nunca mais falei disso, nem mesmo sei se as minhas irmãs se recordam dessa nossa multiplicação da identidade.
Ocorreu-me tudo isto quando tentava explicar que alguém que um conhecido meu era semelhante a um personagem que tinha visto num filme
. Identificamo-nos com os personagens que moralmente, fisicamente
(quaisquer que sejam as características)
mais se aproximam de nós. Olhamos para as figuras que representadas em frente aos nossos olhos
(com as quais nos relacionamos vivem na nossa memória ano mesmo plano que pessoas reais mexem-se sentem choram mas não as cheiramos não lhes tocamos)
como se fossem pessoas que pudéssemos palpar, cujo calor sentíssemos na sua proximidade. Sintomática dessa identificação foi Gilda
(os homens deitavam-se com gilda e acordavam comigo dizia)
. Durante muitos anos sempre via um filme, o que fosse, automaticamente identificava-me com um personagem
e todos os que não estavam consigo, estavam contra ele/ela. Demorei imenso tempo a conseguir separar o que era e o que não era. Ainda me confundo, às vezes.
Mas nunca o cinema conseguirá ser a realidade. Porque qualquer meio que tente representar uma realidade é apenas uma representação. E uma representação nunca é uma realidade.