O que fui antes
Se a nossa alma
(que nenhuma outra expressão física apropriada me ocorre para algo tão profundamente diáfano e metafísico)
pudesse escolher a vida seguinte que vai ter. A possibilidade apenas. Apenas a possibilidade de remediar as nossas vidas passadas, ser aquilo que não fomos, completar conhecimentos e ideias, descansar de trabalhos, ousar
. Como já foi dito, após a morte o julgamento, a alma
(que nenhuma outra expressão física apropriada me ocorre para algo tão profundamente diáfano e metafísico)
descansa sete dias num prado ameno, num limbo dantesco, no castelo dos grandes e dos sages que, apesar de se encontrar nas bordas inferno, sempre me pareceu mais interessante e intelectualmente estimulante que o céu
(dos pobres de espírito é o reino dos céus)
, ou qualquer outra terminologia, mas tendo em conta as minhas contingências tenho tendência dar uma textura às almas e separar o espaço metafísico nesses termos. À alma
(que nenhuma outra expressão física apropriada me ocorre para algo tão profundamente diáfano e metafísico)
, é dada, de novo, a possibilidade de escolher a nova vida que vai encarnar
(não há tábuas rasas neste mundo há escolha e o remédio do anterior)
. E depois nasce.
Mas o que me interessa mais neste concepção não é escolhermos as nossas vidas
(esse fascínio há muito ultrapassado)
, mas tudo o que pode acontecer depois desse pressuposto estar realizado, assumido. Uma alma que queria descansar de uma vida especialmente trabalhosa pode escolher o corpo de um enfermo, um corpo cuja função única seja a libidinosa. Ou para mais depressa regressar ao prado, nascer e morrer logo de seguida
(o descanso prolongado de uma alma é a dolorosa aprendizagem de outras que ficam apegadas ainda à vida terrena)
.
Fazemos árvores genealógicas porque temos curiosidade do nosso passado, ouvimos histórias de família, porque também delas havemos um dia de fazer parte. Saber quem fomos, uma vez, ajuda-nos a saber porque é que somos quem somos.
Para descobrir que fui descubro o dia exacto da minha concepção e conto sete dias para trás, os mesmos sete dias que a minha alma
(que nenhuma outra expressão física apropriada me ocorre para algo tão profundamente diáfano e metafísico)
, que é também aquilo que sou, mais do que os corpos que vou sendo. Todas as pessoas que morreram nesse dia podem ser quem fui na vida anterior. Nunca há respostas exactas, nem verdades absolutas, nem realidades, apenas aproximações.