Algures em Lisboa há uma camisola azul perdida
Há dias que aprecem multiplicar-se em muitos mais e quando julgamos ter passado dois, três, quatro dias passou apenas um, como se as horas se tivessem multiplicado ou o tempo dividido diminuído ou abrandado. Tenho a noção que os últimos dias passaram por mim sem que eu tivesse conseguido assimilar aquilo que deles tinha que retirar, mas isso talvez tenha acontecido porque não tinha nada a retirar deles. Sei que era o meu corpo que me doía, sei porque ainda tenho as marcas marcadas a negro na pele, vergões escuros.
Quando terminou, o saldo era uma camisola azul perdida. Quando fiz questão em tê-la, estranharam-me porque era só uma camisola azul escura lisa. Disseram-me que eu lhe tinha amor, que era da sorte, disseram-me que me lembrava de ocasiões especiais. Disseram-me muitas coisas, muitos símbolos que a camisola tinha para mim. E não era nada disso, era só uma camisola confortável igual a muitas que tenho por casa. Não compreendi a necessidade de a tornarem tão importante. E quando tentei explicar que não era importante, perguntaram-me então porquê tamanha preocupação. Porque sim, porque não posso andar a comprar roupa sempre que alguém faz desaparecer uma camisola minha; o que mais me deixou danado é a falta de cuidado do que propriamente a baixa da camisola.
Ficaram com o meu número e prometeram ligar-me assim que a encontrassem, com a maior urgência, porque para eles a camisola para mim era-me muito querida, que era da sorte, disseram-me que me lembrava de ocasiões especiais. Disseram-me muitas coisas, muitos símbolos que a camisola tinha para mim. E no entanto não era nada dessas coisas. Já disse que foi a falta de cuidado que me deixou aborrecido?
Segunda-feira ligam-me.
Pois sim, até já.