Fantástica Gramática Automática
Sunday, November 20, 2005
  Folhas
Há pouco tempo atrás estava muito vento. Da janela via a chuva que caia com força, o vento que abanava as árvores, como se as quisesse acordar de um longo sono, de um sono pesado. Caíam folhas, enchiam os passeios, os carros, os largos de um desespero vazio e domingueiro
O velho varria o passeio em frente à sua moradia; estava vestido com um fato completo, um fato castanho de Domingo. Numa figura relativamente alta, mexe-se ao sabor da vassoura e das folhas e do vento, mexe-se combatendo a idade, não querendo ver a inutilidade dos seus movimentos. Num fato formal varre as folhas em frente à sua moradia. E mal vira costas, as folhas voltam a cair no sitio de onde ele as tinha varrido, qual criança travessa que deita a língua de fora depois de lhe terem ralhado. Volta-se para trás e vê o seu trabalho destruído por mais uma nortada. Olha as árvores, olha o passeio. Retoma os movimentos dentro do fato castanho formal, varre as folhas de um lado para o outro, mantendo a sua parte do passeio limpo. O vento é violento agora e desafia-o, revolta-lhe os ralos cabelos. A porta de casa abre e uma senhora toca-lhe num gesto de chamada. Com brusquidão vira-lhe as costas e retoma o trabalho com uma energia trémula, uma energia fugaz. Já tem as faces coradas e o seu respirar ofegante sopra mais forte que o vento. Num momento desequilibra-se e parece que vai cair, mas encosta-se ao murete. Deixa cair a vassoura e volta para casa.

A chuva bate com força nas janelas, abafa os outros ruídos. O chuva cai por toda a cidade e encontra-a vazia de pessoas, encontra-a sem ninguém; encontra nas ruas um reflexo cinzento do alcatrão e calçada das ruas, um céu pesado que parece querer cair a cada momento. Há no ar um peso opressivo, um ar de metais pesados que entra dentro dos pulmões, que nos esmaga por dentro, que nos toldas a vista e o pensamento, que embebe os pensamentos.
A casa está quente. Abro a janela, debruço-me o mais que posso, até me encontrar num ponte de equilíbrio precário. Sinto a chuva e o vento a baterem-me na cara, sabe bem o fresco, sabe bem a violência da rua. Recolho-me para dentro, olho a rua e o velho que voltou a varrer as folhas.
 
Comments:
... gosto desse velho obstinado, contrariando o inevitável!!
:)
 
vinha aqui para te dizer umas coisas, porque achava que quem escolhe um nick assim bem podia ouvi-las sem ligar nada... entretanto... bem, entretanto li-te e fiquei sem palavras.

Bj
 
Aqui onde agora moro há muitas árvores. A Este e a Oeste, os mesmos lados para onde dão as janelas, só vejo árvores, e os seus naturais habitantes. Não há velhos... Mas há motores que me arrancam da paz todas as segundas e todas as quintas; uns engenhos ditos modernos que roncam como as Sash V5 de antigamente e, para meu espanto, não aspiram! Sopram as folhas, o pó e tudo o mais que acaba por acumular-se nas varandas mais próximas. Preferia um velho teimoso e louco a quem me desse prazer dizer "Bom dia!".
 
A anónima era eu: Marina... (Esqueci-me!)
 
Se eu estivesse na pele do velho, faria uma coisa de que ele não se lembrou.

... Deixa cair a vassoura e volta para casa. Poucos segundos depois regressa, com uma espingarda de repetição e começa a disparar sobre as folhas. Algumas, atingidas de morte entram em estertor. Outras retrocedem para não mais voltar. O velho, satisfeito, sopra o cano da espingarda, assobia e um cavalo branco aparece. Os filmes de cow-boys, voltam a estar na moda.
 
Cheguei há pouco a casa. Saí do comboio e resolvi andar a pé os minutos que separam a minha casa da estação. Uma ou outra janela tem a luz acesa, alguém com insónias ou sem vontade de dormir. Na rua corre uma pequena brisa.

A meio do caminho encontro um senhor, já de idade, que varre as folhas. Digo-lhe bom dia. Ele retribui, um pouco admirado primeiro, sorridente depois. Já não estamos habituados a gentilezas.

Chego a casa e o hábito de ligar o computador repete-se. Corro os blogs que já tenho nos favoritos. Num deles reparo nos seus próprios favoritos e reparo que há um novo blog que não conhecia. Tem o mesmo template do meu. Resolvo espreitar e encontro belos textos. Um deles tem também um velho que varre folhas...

Há descobertas que valem a pena. Agora vou dormir.
 
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