Fantástica Gramática Automática
Maria
Gosto de pensar que ela se chamava Maria do mar
(sem nenhuma qualquer referência estival sem ser aquela que nos uniu duas semanas no Verão e não chegaram a ser duas semanas que ela se foi embora a meio)
. Já não me lembro do nome dela. Sei que era Maria de M
, Maria da M
, Maria do M mas já não sei o que é que M quer dizer. Hoje é mar. Amanhã pode ser medeiros, mónica, Maria segunda vez. Lembro-me porque era M mais M e apesar de não me lembrar o que M queria dizer. Hoje é Maria do mar e chega só.
Tinha os cabelos de marmelada e gengibre e era bom estar ao pé dela. Os olhos
(como o nome de hoje)
não eram do mar, eram das olivas, dos carvalhos, de outros frutos mas não eram do mar. Mar é só o nome e é hoje. Lembrei-me da Maria do mar, com andar de girafa desengonçada dos catorze anos que tinha, quase tão alta como eu
(e nem um beijo, um leve e subtil tocar de lábios
.
As palavras sentidas
(fuck prick cock wanker bitch)
É de manhã e já é de tarde porque sol é tão quente
(a televisão fala de Curral de Moinas e dos filmes de hardcore que passam no cinema da vila
hard porque os olhos ficam tão esbugalhados que ficam a arder
core porque uma pessoa coraria só de ver a mulher do Amâncio no coreto
amanse-o
amansado pela pornografia caseira)
. Isto para justificar a espera numa sala de espera. Não lia já. Havia de ter lido mas naquele momento não queria, tenho-me interessado por tudo. Pela senhora que ninguém conhece e escreveu a vida em livro de poesia e o livro de poesia a brincar às rimas pobres e quadras malhadas foi editado pela câmara municipal de Loures e embora o livro não tenha valor literário
(a não ser que alguém o trate como literatura)
é contingente aos valores pessoais e à vida de quem o escreveu, do tempo em que o centro comercial do sol e da lua não tinha arrasado a lezíria e a quinta do infantado era um feudo onde mulheres andavam de cu para o ar a ceifar e os homens as derrubavam mas margens do afluente do Trancão para lavar as vergonhas
. A televisão em rodapé dizia que te amava e que eras o homem da minha vida, que eras a minha vida e que não havia mulher no mundo que mais amasse e adorasse a mãe dos meus filhos o meu companheiro a guerra em Moçambique a namorada com queria casar assim que arranjar dinheiro para comprar a anilha e quero encontrar os que não estão mutilados do meu batalhão sob o comando do capitão silva que andou na mata de Angola nem quero os que estão fodidos e amo-te homem mulher da minha vida e amo-te a ti e aos nossos filhos
(não por esta ordem nem por estes sexos todos misturados
“amo-te meu amor, és o homem da minha vida e amo muitos os nossos filhos fruto do nosso amor e do meu ventre. adoro-te carlos adozinda – freixo-de-espada-à-cinta”)
. Não me impressionava o uso da palavra mas sim a sua conjugação verbal. É dos verbos que mais detesto e dos conceitos que mais querido me é. Aquele. E o seu uso. Senti que a palavra se descolava do seu conceito, o significado do significante
(nesse momento a palavra não era mais do que dizer palavrões numa língua estrangeira não compreendemos o seu peso, que nem a leveza da literatura pode aliviar
apenas suster instantaneamente)
.
(fuck prick cock wanker bitch)
Cadeira
Até finalmente me ter conseguido sentar. E depois levantei-me e fui fazer outra coisa
(procurar ideias ao frigorifico à cama por fazer às memórias de férias ou do trabalho ou a outras coisas quaisquer)
. E depois voltei a sentar-me sem me conseguir concentrar
parece que volto a sentir a angústia que às vezes não me deixa dormir
(já tive uma ideia o homem manco que subia da rotunda do relógio em direcção aos olivais
depois e tanta terra sem mar a nos separar
e na mão que não ajuda a manquez levava tantos garrafões que à luz do sol ganhavam brilho e pareciam uma flor com o desequilíbrio da perna trôpega e estragada)
porque se todos os dias trabalhava, se todos os dias escrevia, se todos os dias me sentava e tinha ideias fui deixando-as fugir e repousar para mais tarde, como um caçador de borboletas que se senta numa pedra triste
(ou no assento do carro a chorar por uma carreira mal escolhida
quando eu quando recebi o diploma em casa e dizer que era oficialmente reconhecido por uma instituição pública de ensino superior que era educador de infância que remédio remediar a situação e escolher)
. Sentei-me a fazer outras coisas inúteis no computador e levantava-me para comer pão com queijo. Até que escrevia e as palavras custavam tanto, já não eram palavras anónimas e casuais, não eram aleatórias nem passeavam sós
(tal como todas as outras e de todos os outros traziam Platão Ovídio e a Bíblia)
.
PAUSE/PLAY
Momento suspenso à espera de regresso
Debaixo das escadas
Uma vez há uns anos atrás perguntei-me de onde vinha a religião. E a religião, só pode vir mesmo de um sítio
(de dentro de nós)
. Uma vez há uns meses atrás perguntei-me o que é que queriam dizer os gestos. Os gestos são uma extensão das nossas verbalizações
(ou ao contrário, são a origem das nossas verbalizações, mas que existem com as verbalizações e são igualmente importantes
tanto quanto que quando me vendam os olhos eu não consigo ouvir
nem ver)
. Uma vez há uns dias atrás estava a apanhar o avião. Sentámo-nos lado a lado e
(“Que bom, que bom, vou regressar ao meu país” “Ai que saudades, que bom, que bom”)
ao nosso lado um cachopo de nove
(chamava-se Martim)
dez onze doze anos com muita vontade de meter conversa com os da frente
(“Álvaro, Álvaro” “Que é que queres” “Olha aqueles aviões” “Ai o caralho tu e a merda dos teus aviões”)
e como não o queriam, conversava com os do lado. Às vezes penso como as crianças são cruéis umas com as outras. E estares sentado perto de estranhos impele-te a cresceres e meteres conversa sobre aquilo que têm em comum.
Olhas para mim, avalias-me. Quem é que sou eu
(quem é que és tu?)
? Lês? Eu tenho um livro. Ouves música? Eu tenho um iPod. Quem és tu? E quando te perguntavas isso e eu nos escrevo não sei que responder, porque para isso tenho que saber quem sou eu. E talvez mais do que as minhas características físicas e emocionais eu seja aquilo que significo para as pessoas, num momento no tempo e ao longo do tempo e depois desapareço. Para ti signifiquei duas horas e meia e pronto.
Quando virámos na pista parámos e arrancámos o Martim benzeu-se agarrando a cruz que tinha ao pescoço
(Sou eu agora quem olha para ti, Martim, que fazes sabes o que fazes. Persignas-te. E estás protegido. Eu morro e tu não.)
Uma vez há uns meses atrás perguntei-me o que é que queriam dizer os gestos. Os gestos são uma extensão das nossas verbalizações
(ou ao contrário, são a origem das nossas verbalizações, mas que existem com as verbalizações e são igualmente importantes
tanto quanto que quando me vendam os olhos eu não consigo ouvir
nem ver)
. Mas o gesto era de protecção, mais do que um chamamento a uma divindade abstracta. Como não passamos debaixo de escadas.